quinta-feira, 4 de abril de 2013
Juventude, violência e políticas públicas
Nas últimas décadas, a violência atribuída aos jovens tem adquirido importância econômica, política, social, cultural, de saúde pública, e acredita-se que refletir sobre o tema juventude-violência implica pensar em políticas públicas. Políticas, de ordem privada ou estatal, com norteadores essencialmente de caráter público, que possibilitam a realização de sonhos, a elevação da pessoa à condição de sujeito e a concretização de expectativas de futuro aos jovens[1], dentro do modelo de sociedade em configuração no Brasil.
Diante desse quadro, este artigo pretende explicitar a tensão social na contemporaneidade promovida entre a relação “ser jovem” e “expressões de violência”, sem perder o horizonte da constituição histórica da categoria juventude e suas vinculações com as ações que denominamos violência.
A Invenção da Juventude
A categoria Juventude, considerada como um período de vida entre 15 e 24 anos[2], é uma invenção da sociedade moderna industrial[3]. Até os anos 50, em face da idéia funcional contida no projeto de civilização ocidental, “ser jovem” era viver um interstício entre o mundo da criança, sem responsabilidades, e o mundo adulto, voltado às responsabilidades do trabalho, da família e das exigências da sociedade. Aqui, a instituição escolar, nas perspectivas de classes adotadas nessa realidade, caracterizou-se como sendo o local institucional específico para auxiliar o jovem na passagem da vida “pré-adulta” à adulta, sem desconsiderar o papel da família.
Hobsbawm (1995, p. 317), ao falar da revolução cultural da metade do século XX, mostra como a juventude (período que se estende da puberdade até a metade da casa dos vinte) se transforma em um grupo com "consciência própria e se torna um agente social independente". Para o autor, a base dessa "consciência começa no conflito de geração e de sexo, no seio da família". No caso, Hobsbawm está apontando um aspecto positivo atribuído à juventude das décadas de 60-70. Na época, os jovens tiveram importante papel diante da radicalização política, em face da guerra fria.
Em Morin (1986), apreende-se que o movimento de juventude vai além da política, uma vez que se inscreve também na cultura. Há, no mundo, o desencadeamento da internacionalização de um aspecto da cultura que inclui os jovens, difundida por intermédio dos símbolos emitidos pela música, cinema, moda. O autor denominou-a “cultura de massa”. Nesse movimento de consolidação da cultura de massa, vê-se reforçada a idéia da condição do “ser jovem”.
Para Pierre Bourdieu (1983: 112), restringir o movimento de juventude para uma condição, uma preparação ao mundo do trabalho, significa reproduzir hierarquias em que “cada um deve se manter em seu lugar”. Para ele, essa caracterização dá à juventude a condição de ser apenas uma palavra. Bourdieu tem razão, em parte, uma vez que esse interstício limitava-se aos jovens favorecidos, o que implicaria uma redução do que se denominou “cultura juvenil”, valorada com base em comportamentos, atitudes, estilos, modos histórica e socialmente em composição que, de uma forma ou de outra, contrapõem-se aos padrões (ou padronizações) esperados (as).
Hobsbawm (1995: 320) entende que a dimensão da idéia de juventude não é nova; o que é novo e importante ressaltar no período é que seu modus operandi mudara. Eis aqui a novidade. A juventude dessa época tinha uma predisposição de buscar o prazer com o corpo, numa afronta às regras, à ordem e aos valores do capitalismo (vide os movimentos de contracultura). Já no fim do século XX, segundo Hobsbawm (idem: 328), a revolução cultural representa o “[...] triunfo do indivíduo sobre a sociedade, ou melhor, o rompimento dos fios que antes ligavam os seres humanos em texturas sociais”.
No Brasil, segundo os trabalhos de Costa (1993; 2006) e de Abramo (1994), o movimento de jovens ganhou dimensões políticas e culturais, e passou a organizar o lazer de determinados agrupamentos de jovens, extrapolando a expectativa funcional e cívica do papel social do “ser jovem”. Esses agrupamentos, em muitos casos, ganharam conotação negativa aos olhos da sociedade, em razão de seus comportamentos e posturas “fora dos padrões”. Para Costa (2006: 18), os grupos de jovens, denominados gangues juvenis, “começaram aos poucos a ter visibilidade, no fim dos anos 50 e início da década de 60, inicialmente em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, e, a seguir, em outras partes do Brasil”. Contudo, ainda não eram tidos como um “problema” socialmente preocupante.
Desse contexto, explicitado a partir de aspectos políticos, culturais, de lazer e de massa, entender o que venha a ser “juventudes” [4], perpassada pela noção de “cultura juvenil”, requer interpretá-la: como um estágio preparatório à vida adulta ou ao desenvolvimento humano; como, no interior da lógica da sociedade atual, uma massa concentrada de poder de compra; e, como parte de um internacionalismo da cultura juvenil, de base urbana.
Juventude: um “problema” social contemporâneo?
A transposição da violência, dos “muros” periféricos aos bairros de classes média e alta, fez com que a mídia, a sociedade e os órgãos públicos passassem a enxergá-la com maior grau de preocupação. É do final dos anos 80 em diante que, ao se refletir sobre a violência urbana, se esbarra na temática da juventude. Essa vinculação, violência-juventude, assume um caráter urbano de expressões irradiadas dos grandes centros para as cidades de médio e pequeno porte, em escala mundial.
A juventude traduz-se em “problema” quando se fala do agressor ou da vítima nos casos em que as violências se explicitam no urbano. Aos olhos do senso comum e das instituições de formação e de opinião pública, o “ser jovem” está intimamente atrelado às expressões de violência que assombram o cotidiano urbano. Morte, sangue, arma, droga, álcool, brigas, vandalismos, sensação de superioridade sobre o outro, risco, excesso, irresponsabilidade, indisciplina, mas também energia, vitalidade, possibilidade, expectativa, sonho, visibilidade, solidariedade, sociabilidades, compõem o universo e a singularidade de muitos agrupamentos de jovens. Em campo aberto, os movimentos juvenis não se resumem à violência; contudo, a ela, em muitos casos, estão atrelados[5].
Com referência à relação juventude, violência e políticas públicas, ressalte-se que não há políticas públicas à juventude. Há, sim, um conjunto de ações isoladas, algumas interessantes, outras complicadas, no âmbito do Estado e da Sociedade Civil, de caráter didático-pedagógico e educacional. Do ponto de vista do conjunto dessas ações, a juventude, quando considerada um “problema social”, traduz-se em minimizar seus movimentos e, ao se tratar da ação repressiva, em disciplinar, pela força e, exemplarmente, por suas ações. Equivale a afirmar que as tendências de elaboração de políticas públicas à juventude permanecem, em grande parte de suas outorgas, na lógica funcional para uma formação ao mercado ou como controle social[6].
Há, no Brasil, cerca de 35 milhões de jovens[7], e sabe-se que o crescimento do número de pessoas na faixa etária de 15 a 24 anos é significativo. Por outro lado, as conseqüências têm igual proporção, o que levou à realização de inúmeras pesquisas, na tentativa de compreensão do fenômeno[8].
Os dados contidos na pesquisa “Mapa da Violência IV: os jovens do Brasil. Juventude, Violência e Cidadania” são consistentes e importantes para a apreensão do movimento de juventude e da dimensão da violência. Os números exprimem uma realidade: a. Em 2002, 48.983 jovens foram vitimados no país, num total de 54,5 mortos por 100 mil habitantes; b. Em uma década (1993 a 2002), assistimos ao aumento de 88,6% de jovens mortos; c. Em 2002, 39,9% das mortes de jovens se deram por homicídio, 15.6% por acidente de trânsito e 3,4% por prática de suicídio. Juntos, homicídio, trânsito e suicídio totalizam 59% das mortes dos jovens brasileiros; e. Em 2002, 31,2% das mortes de jovens foram causadas por arma de fogo; f. Nos finais de semana, os homicídios aumentam 2/3, em relação aos dias da semana.
Embora a pretensão deste estudo seja a de oferecer subsídios à formação de políticas públicas de juventude e à formatação de estratégias preventivas direcionadas para reverter a situação sociocultural vivenciada pelos jovens no país, pouco contribui como questionamento ao processo histórico de constituição das relações sociais no país. No entanto, é um contributo importante, pois, diante da perplexidade desses dados, pergunta-se: por que tanta violência? O que passa na cabeça de certos jovens? Que sociedade é esta? Como se explica tamanha irracionalidade, no comportamento de alguns?
O encaminhamento deste artigo é sociológico, e a ênfase direciona-se aos traçados históricos, políticos, econômicos e socioculturais delineados por nossa sociedade. Contudo, o entendimento desse fenômeno não é tarefa fácil, uma vez que ele incorpora múltiplos fatores e determina a necessidade de análises mais abertas e menos reduzidas, deterministas ou policialescas.
Pensar o movimento juventude implica incursões à realidade histórica, econômica, política e sociocultural do país, inclusive porque a chave para essa resposta se encontra nas próprias relações sociais[9]. De outro modo, reduzir as discussões sobre juventude-violência às questões de maioridade penal, de construção de presídios ou de abrigos, de direito penal, de polícia, de educação ou de disciplina significa perder a oportunidade de pensar a sociedade brasileira e suas trajetórias.
Da perspectiva histórica, o nosso projeto de modernização desencadeou uma rede de relações no interior da sociedade, baseadas no autoritarismo-paternalismo marcado pela padronização de comportamentos civilizadores que não incorporou o negro, as mulheres, os pobres, os índios e as diferenças (econômicas, políticas, culturais, sexuais, entre outras). Conseqüentemente, a maioria das vítimas da violência tem esse perfil.
Da perspectiva econômica, a juventude deveria estar preparada para a vida urbana e para a participação no novo modo de produção de bens e de consumo. No entanto, o processo de urbanização, de industrialização e tecnológico, no Brasil, intencionalmente ou não, dificultou o acesso aos benefícios do capital para certos setores da sociedade, embora tenha disponibilizado o desejo para todos. Essa situação agravou-se no atual “avanço” tecnológico e na sociedade da informação, produzindo aumento da distância entre uma formação mais humana da pessoa e sua participação nos destinos de sua vida individual e coletiva. É certo que quantidade significativa de jovens está à margem desse acesso, o que diminui a possibilidade de muitos terem o reconhecimento esperado, nesse modelo de competição econômica.
Da perspectiva política, sabe-se que, dos anos 60 em diante, a sociedade brasileira passa a experimentar um processo de individualização avassalador, o qual interfere, sobretudo, no comportamento dos jovens. Esse processo permitiu o surgimento de um conjunto de ações desmobilizadoras, do ponto de vista das organizações sociais e coletivas, arremetendo as pessoas, os grupos, as instituições e a sociedade para um esvaziamento de seu sentido político, no que diz respeito às relações sociais.
Como efeito, nos médios e grandes centros urbanos brasileiros, as relações interpessoais passaram a ser anômicas, vazias e de pouca interatividade, impedindo e dificultando a formação de identidades mais coletivas, tolerantes, participativas e abertas. Esse esvaziamento político, no sentido de estrangulamento de nossa condição de sujeito sociocultural e político, abre espaço para condutas fascistas, autoritárias ou de desrespeito ao “outro” (estrangeiro, negro, professor, nordestino, mulher, homossexual, pobre, instituições sociais), pelo simples fato de o outro ser caracterizado como insignificante[10].
Sem a mediação do político, as relações sociais contemporâneas, em especial entre os jovens, contribuíram para a consolidação de um quadro de condutas de risco, via de regra expresso por atos caracterizados como de violência. Em campo aberto, a violência ganha dimensão de banal, vazia e, aparentemente, sem sentido, sem conteúdo, desconectada dos princípios civilizatórios.
Da perspectiva cultural, a violência é parte do viver, do presente, e está no trânsito, nas casas, nas ruas, nas escolas, no tráfico de drogas, no Estado, nas relações de gênero e de poder, nas instituições (policiais, judiciárias, hospitalares, educacionais etc.). Se o homem é um ser simbólico que teceu as suas próprias redes de relações, temos que decifrar seus significados e sentidos.
A partir dessas perspectivas (histórica, econômica, política, cultural e social), a violência ganhou corpo, lugar, etnia, cor da pele, rosto perfil e origem. Embora seja constituída nos jogos de relações sociais, a culpabilidade de suas práticas restringe-se às classes populares, causando espanto quando seus autores são de classe média ou alta. Primeiro, porque quem produz a violência, no visor imaginário do senso comum, é pessoa de baixo poder aquisitivo, pobre, negro, mestiço e, além desses requisitos, ocupa piores localizações no espaço urbano. Segundo, porque a ordem social não reconhece que a violência “constitui” outras formas de relações sociais, reproduzindo representações, códigos e estilos de vida próprios, por vezes até como proteção contra hostilidades de nosso tempo[11]. Por fim, porque o discurso corrente não reconhece que o indivíduo inscrito na sociedade, independentemente de classe social, faz parte de um sistema social complexo, e reconhecer esse aspecto do sistema social requer aceitar que a sua composição não é exclusivamente racional, como se pretendia no processo civilizador moderno. Isso porque ele se complementa, também, de informações diversas (míticas, ritualísticas e sentimentos) e porque as pessoas, cada qual ao seu modo, reagem aos estímulos dos afetos, das angústias, das frustrações e das desgraças.
De fato, é no social que a violência juvenil ganha a condição de “problema” e se expressa como um componente da violência urbana. Não está vinculada só, e exclusivamente, às estruturas sociais injustas, às desigualdades econômicas, à pobreza, à inércia do Estado ou à desestruturação da ordem legal. Esses argumentos, distantes de uma óptica multifacetada, estão colocados em pauta numa quantidade significativa de trabalhos sobre violência.
Acrescente-se que não há como isolar a juventude da violência; a não ser que se resgatem aos jovens as expectativas de futuro (nos termos da sociedade de consumo), que se diminuam as distâncias socioeconômicas e culturais e que se reconstitua uma formação mais política dos grupos e sujeitos sociais com indicativos para minimizar os efeitos da individualização.
Considerações Finais
A preocupação com a juventude é recente. De pouco é que se visa empreender políticas públicas que contemplem interesses e necessidades dos jovens. Até os anos 90, o que se ouviu, em termos de políticas públicas direcionadas à juventude, se limitou a ações no campo das instituições educacionais e esportivo-culturais, com práticas didático-pedagógicas de preparação para a vida adulta.
Essa preocupação não é exclusiva do Brasil. Nos últimos 10 anos, a comunidade européia, para melhor entender o que vem a “ser jovem”, tem financiado inventários sobre juventude[12], com a pretensão de subsidiar a constituição de políticas públicas com maior assertividade e consistência.
Em nossa realidade, há “aparente” desconexão e ausência de diálogos entre o material produzido, na academia, sobre juventude e as ações sociais e públicas direcionadas a ela, em que pese o esforço de algumas ONGs e de programas de pesquisa.
Tem-se que, com devida urgência, elaborar um conjunto de ações, marco de políticas públicas à juventude, em diversas frentes, inclusive fora das demarcações voltadas à formação para o mercado, que viabilize a emancipação, a singularidade e a autonomia do sujeito e “proprietário” de seu próprio destino e processo histórico.
Ainda que se considere o esforço das ações públicas, estamos longe de equacionar a violência juvenil. É o que falam os jovens, em forma de silêncio traduzido em suicídio, uso de álcool, excessos, agressões, uso de drogas, indisciplinas e mortes.
Contudo, para se elaborar um conjunto de ações as quais contemplem o que chamaremos de políticas públicas direcionadas à juventude, não se pode partir de receita pronta e acabada, vinda de cima para baixo. Por não existir receita, devemos tomar os seguintes cuidados: a. a violência não é privilegio das classes populares, embora estas estejam mais suscetíveis a ela; b. as ações devem ultrapassar o universo da educação e do esporte, sem a intenção de reprimir a juventude ou suas práticas; c. não há como formular transformações significativas, dentro da lógica do mercado e do capital, sem minimizar seus efeitos de individualização, de consumo e de competição; d.ações políticas que valorizem o reconhecimento do “outro”, do coletivo e da dignidade humana; e. resgatar o sentido de um projeto pessoal e coletivo de vida, na experiência juvenil em nossa sociedade.
Cabe enfatizar que a não observância dos cuidados apontados acima poderá trazer o agravamento das violências presentes nos movimentos e agrupamentos de juventudes. Se, por um lado, as classes populares clamam pelo acesso aos benefícios das sociedades tecnológicas, informacionais e de consumo, ou buscam estratégias de proteção às desigualdades de nosso tempo, por outro lado, o esforço das classes média e alta em proteger seus “bens” e “patrimônio” promove práticas de higienização da sociedade, numa luta moral para eliminar a “parte maldita”: os humildes, os pobres e a pobreza.
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